I Call You Love
Meister
Meister
Eu... (escuridão)... Estou em que lugar?... (vazio)...
Há algo em minha volta, uma sensação ruim percorre todo o meu corpo, há uma eletricidade estática no ar. Sonhos perambulam minhas noites insones e infinitas, cheias de angústia. E há sempre o vazio...
Há algo em minha volta, uma sensação ruim percorre todo o meu corpo, há uma eletricidade estática no ar. Sonhos perambulam minhas noites insones e infinitas, cheias de angústia. E há sempre o vazio...
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09h00min da manhã, quarto de hospital, número 203:
Doutor Gustavo Orlof chega para fazer mais um check-up em William, que está em coma há quase dois anos, sem nenhum sinal de mudança em seu estado, nenhuma reação. O médico pensa que logo, logo, se nada mudar no quadro médico, a diretoria hospitalar vai começar a pressionar para praticarem a eutanásia neste paciente, desse modo diminuindo os custos do hospital em relação aos aparelhos que estão ligados nele. Em silêncio embora na maioria das vezes Orlof julga-se um ateu, ele realiza uma prece pela cura desse rapaz que a medicina não pode ajudar.
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... Uma luz ao longe, fraca, quase que imperceptível opaca e sem vida, mas nesta escuridão, parece o brilho de mil sóis. Vou em direção a ela, estou num tipo de estrada e ao meu redor nada mais que uma cortina negra e densa, às vezes entrecortada por alguns brilhos vermelhos ou amarelos.
As memórias, enquanto caminho, tento fazer elas virem a tona, quero lembrar quem sou, meu nome, o que aconteceu comigo e porque estou aqui neste lugar estranho e sem vida. À medida que avanço o esforço para lembrar-me exaure energias substanciais de meu ser, meu corpo parece estar carregando um fardo de toneladas, minha respiração é lenta e extremamente dolorida e sôfrega.
Há um cheiro de algo podre e azedo no ar, e a cada passo recuo cada vez mais do meu objetivo, a luz, em vez de avançar... deve ser o que chamam de esgotamento nervoso!
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12h30min, sala de reunião Hospital Arthur Schopenhauer:
- Bem estamos aqui para decidir o que fazer no caso do paciente em estado comatoso, William Aristófanes Scheller.
- Mas, o que você está falando Sr. Deschamps - irritado o Dr. Orlof, dirige-se ao diretor geral do centro médico Arthur Schopenhauer -, isso é apenas um corte de gasto, pois ele está apenas dois anos em coma, e na história médica há casos de pessoas que passaram mais de dez anos neste tipo estado e acordaram, digamos que há uma quase freqüência nisto.
Maurício Deschamps, um senhor dos seus sessenta e cinco anos, renomado cirurgião cardíaco na cidade de Solitude, estudou em várias escolas européias, e se graduou em medicina na Inglaterra, e fez pós-graduação na França e Espanha consecutivamente, depois voltou para seu país e cidade de origem, onde exerceu magistralmente sua profissão, na qual ao se aposentar, foi convidado para exercer o cargo de Chefe administrativo do maior centro médico da cidade e da região.
- Meu caro Orlof, - o redargüiu num tom intimo e apaziguador em relação a Gustavo, o qual em sua opinião considerava o mais brilhante jovem médico em sua guarda, e que logo após sua aposentadoria seria um forte candidato a ocupar o seu atual cargo no hospital – infelizmente não há nada mais o que fazer para este pobre jovem, que pelo que me consta está em uma espécie de contagem regressiva para os seus órgãos pararem de funcionar. Uma falência total dos órgãos.
- Mas... – Orlof tentou retrucar.
Sem notar a breve interrupção de seu pupilo Deschamps continuou:
- Deveras, foi um trágico acidente o que aconteceu a este pobre rapaz! Infortúnio dos infortúnios, ser o único sobrevivente já que toda sua família jaz morta nesta brutal tragédia.
- Não seja tão mordaz e teatral Senhor! – Orlof, fala meio impaciente.
- Tudo bem, já que você não gostou deste meu lado shakespeariano, vamos aos assuntos práticos em questão! Bem como você sabe a manutenção dos aparelhos que este paciente, já desenganado usa é cara, e este dinheiro gasto, digamos que inutilmente, pode ser usado em outro setor que poderia ajudar um pouco melhor um maior número de outros pacientes...
-... e – continuando Deschamps, já que Orlof apenas o ouvia – já que ele não possui mais ninguém que seja responsável por ele, é o estado e o próprio hospital que decidem se devem ou não desligar os aparelhos, correto!
- Sim! – mecanicamente concordou! Orlof pensou um pouco – Como não há nada que posso fazer! Para quando vocês pretendem desligar os aparelhos?
- Logo que a justiça der o aval para a eutanásia! Daqui a uns três dias mais ou menos!
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Pela trilha que sigo há algo mais suspenso no ar, quase que pairando sobre mim, querendo me sufocar, engolir. Agora posso distinguir sombras entre os lados que circundam a estrada na qual estou (... distante... a luz está cada vez mais distante...), percebo seus contornos e isto paralisa meu corpo e gela meu sangue, o que vejo é alguma espécie de coisa ou animal disforme, algo que nunca tinha visto antes e é dali que vem esta força que exaure minhas energias.
Tento correr, as forças parecem não querer voltar ao meu corpo, ir adiante é tudo que quero, mas o horror que me impele a fugir é o mesmo que me impede de correr, escapar dali, dessa sensação sinistra e mórbida, esse medo irracional, o qual tomou conta de meu ser.
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13h55min, Hospital Arthur Schopenhauer:
Gustavo Orlof tem apenas trinta e dois anos, e já é um dos mais respeitados cirurgiões e clínico geral da cidade de Solitude. Em sua sala, repousa agora no pequeno sofá bege que decora seu escritório. Estressado desse começo de dia, ao seu lado repousa um copo de uísque com gelo. Ele pensa porque o caso de William mexe bastante com os seus sentimentos, afinal ele é um médico, e ele sabe que o Doutor Deschamps está certo em afirmar que o paciente não tem mais esperança de retorno, é apenas uma questão de dias para ele sucumbir e a senhora morte vier buscá-lo.
Mas mesmo assim, ele sente um estranhamento, uma coisa que diz que não é certo, não é hora de desligarem os equipamentos de William, e lhe dar um fim misericordioso. Isto lhe dá uma sensação de descontrole, porque não é racional, ele acostumado a ter controle e sempre se manter num campo estritamente lógico, está experimentando este sentimento meio que sobrenatural. E isso lhe deixa frustrado, agoniado e com muito medo.
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Oh meu Deus! Que coisas são essas saindo das sombras, eles são... (que horror!!)... indefiníveis, sinto o tecido da realidade rasgar-se, seus corpos negros e pegajosos, a cada passo que, estas coisas dão, parecem que elas deixam cair um pedaço de piche, um óleo negro, desprender-se dos seus corpos, se é que realmente dá pra chamar esta massa disforme de corpos.
Parece que retornei aos pesadelos que tinha quando criança, ao medo puramente infantil ou juvenil. Sinto um puro terror, onde estou? Será que vou sucumbir neste lugar, no meio do nada, escuro e opressor, sem ao menos lembrar de minha identidade.
William sente algo prender-se em suas pernas, uma sensação de calor e uma dor excruciante percorre seu corpo e talvez também sua alma. Um flashback de memórias percorre a sua mente, seu corpo, sua infância com sua irmã e irmão mais novos, não muito mas, ele era dois anos mais velho que a garota, seu nome era Ellen, e três anos e meio que o garoto, que era chamado de Friedrich, os dois seus amados irmãozinhos. Ele também lembra de seus pais, o casal Anna Beauvoir e Alexsander Beauvoir, e o acidente, numa estrada entre Los cálidos e Solitude, eles tinham ido visitar sua tia Suelen, que estava viúva há mais de três anos, e agora vivia sozinha desde quando seu marido se foi, eles nunca tiveram filhos.
Na volta do fim de semana, ele lembra bem de estar no banco de trás do velho Ford de seu pai, estava se divertindo com seus irmãos, cantando uma música do Queen, que estava bastante em pauta devido aos eventos esportivos. De repente, em disparada pela estrada um caminhão em completo descontrole, vinha na direção do veículo no qual ele e sua família estavam... depois escuridão...
Ele queda no chão e de joelhos, lágrimas rolam de suas faces, chora compulsiva e incontrolavelmente. Enquanto isto os seres negros a sua volta estão estaqueados formando um tipo de circulo, no qual ele está no meio. O peso e a sensação de sufocamento se desvanecem na mesma medida que ele chora, como que expurgando tudo de ruim. E a escuridão se esvai, e então a claridade...
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17h10min, Hospital Arthur Schopenhauer, quarto 203:
Orlof está sentado numa cadeira ao lado do leito de William, seu pesar é enorme, seu envolvimento neste caso o levou a um completo estado de passionalidade, ele tenta negar a morte iminente deste rapaz que ele está olhando. Ele enfrenta a ineficácia da ciência e da medicina, e a provável inexistência de milagres... (um piscar de olhos, um movimento...), não é possível ele está acordando...
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William sente a claridade machucar seus olhos e todos os músculos de seu corpo doerem, e se vê finalmente em algum lugar familiar e conhecido, ele reconhece um quarto de hospital, está deitado, e no lado de sua cama encontra-se uma pessoa que ele desconhece, seu rosto está perplexo.
Orlof olha completamente estarrecido e espantado para o rapaz que há apenas momentos atrás estava desenganado pela medicina moderna, a poucos dias de ser praticamente desligado, arrancado totalmente do mundo dos vivos. Ele presenciara o chamado milagre, ao qual tanto desdenhara e o qual também nunca admitiria em sã consciência, nada poderia explicar isto, provavelmente se tudo fosse confirmado, este paciente entraria pro hall da fama das curas impossíveis. E pela primeira neste longo e cansativo dia Doutor Orlof sorriu.
[1] “Pegue minha mão / Eu chamo seu nome / Por favor, me leve lá / Não, eu não olharei de volta / Eu vou com você”.
Eu Chamo seu Amor
Eu Chamo seu Amor