NAVIGATOR: UMA ODISSÉIA NO TEMPO - 1988

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Direção: Vincent Ward
Roteiro: Vincent Ward, Geoff Chapple e Kely Lyons
Produção: Gary Hannam e John Maynard
Música: Davood A. Tabrizi
Fotografia: Geoffrey Simpson
Edição: John Scott
Direção de Arte: Mike Becroft

Elenco:
Bruce Lyons ... Connor
Chris Haywood ... Arno
Hamish McFarlane ... Griffin
Marshall Napier ... Searle
Noel Appleby ... Ulf
Paul Livingston ... Martin
Sarah Peirse ... Linnet

Sinopse: 1348 - Cumbria na Inglaterra, um pequeno vilarejo de mineiros ameaçado pela 'peste negra', é o ponto de partida para essa fantasia medieval. Por vezes repetidas, um garoto tem o mesmo sonho. Ele sonha com uma cidade distante que poderá ser a salvação de seu povo. Se os mineiros fundirem uma cruz de cobre e colocarem na ponta da torre da catedral dessa cidade, todos estarão salvos da praga.



O cineasta neozelandês Vincent Ward (Amor Além da Vida) sonhou bem alto em seu projeto: engendrar um filme sobre uma expedição no tempo, que viaja (num piscar de olhos) da sombria Idade Média até o ano de 1988. Navigator é fundamentalmente um filme sobre a fé, a esperança e a possibilidade de o sonho alterar a ordem concreta das coisas. Ou, como declarou o próprio diretor: "A fé e a esperança são pré-requisitos para a ação e a mudança. Basicamente, eu queria ver o século XX com olhos medievais. É como se os demônios de nosso mundo contemporâneo — os monstros tecnológicos da destruição — pudessem ser previstos nos pesadelos dos homens da Idade Média. Um sonho de inferno, surgindo da vida medieval, que era triste e sem cor". Esse sonho começa em Cumbria (Grã-Bretanha) no ano de 1348. Griffin (o fascinante Hamish McFarlane, de apenas 11 anos, recrutado por Ward numa escola), um garotinho de nove anos, sonha com uma cidade celestial, sua grande catedral e seu campanário. A aldeia em que vive padece nas garras da Peste Negra. O terror e a pestilência atacam, iluminados pela lua cheia. "Os homens, acuados, viraram animais", gritam os mineiros de Cumbria, amedrontados com o poder ceifador da praga.
Griffin revela ao irmão Connor (Bruce Lvons) o seu sonho, que seria a única possibilidade de salvação: "Colocar uma flecha em uma catedral distante, antes do amanhecer". O garotinho parte para a empreitada transtemporal ao lado de outros aldeões: Connor, Searle, Ulf, Martin e Arno — o homem de um braço só. Chegam a uma caverna soturna que dá acesso a um outro lugar, um outro tempo. Cumpre-se a profecia. Saem do outro lado do globo terrestre, na Nova Zelândia... em plenos anos 80. O grupo de agourentos e supersticiosos mineiros medievais vaga entre avenidas, automóveis e luzes fluorescentes de uma cidade moderna. O fascínio é chocante ao avistarem os postes como se fossem "mil archotes" da infinita e hostil cidade.
O garoto Griffin continua profetizando: "Um de nós morrerá na catedral". Os crentes trabalhadores medievais procuram uma fundição seguindo o cheiro de ferro queimado. Encontram uma, fazem amizade com os solidários ferreiros, que em princípio os confundem com "hare krishnas". E a expedição parte para a delirante tarefa de vencer a praga, atordoada pelo ruído do mundo contemporâneo, que tentam decifrar. Ward joga pesado com a câmera, num trabalho de vigorosa plasticidade. Seu estilo é contundente e forte visualmente, apesar das escorregadas frequentes em resoluções obscuras de sequências. Ele capta com extraordinária energia (em travellings alucinados) o clima de delírio místico que a trama sugere.
Navigator é uma fábula febril e estranha. Mais do que simplesmente narrar uma viagem no tempo, o diretor neozelandês se ocupa em construir alguns paralelos entre os séculos XIV e XX, "ambos calamitosos", segundo ele próprio. A relação mais explícita dessa calamidade é trabalhada pela ligação (inevitável e nada original) entre a Peste Negra e a Aids (comentada pela tevê em imagens de 1988), a verdadeira "peste" atual. Sem mencionar as guerras avassaladoras de ambas as épocas. Nos paralelos de Ward, há um quê de nacionalismo — Cumbria e Nova Zelândia são rincões pequenos e isolados, à margem do resto do mundo, mas portadores de "revelações" fundamentais para a raça humana. Ward (nascido em 1956) tem em seu currículo o curta A State of Siege e In Spring One Plants Alone, premiado no festival de Chicago de 1982. Navigator (filmado em quatro anos) sucedeu ao premiado Virgil (1984), sobre a solidão de uma criança, ambos produzidos pelo australiano John Maynard numa co-produção Nova Zelândia/Austrália. Dado curioso: os protagonistas de Navigator e Virgil são crianças. Ambas as obras têm morais cristalinas, vulneráveis e infantis, e está nisso, em grande parte, o encanto delas.
Num projeto fotográfico elaboradíssimo (a cargo do competente Geoff Simpson, vindo de documentários e que atuou em Mad Max II), a Idade Média é representada em preto-e-branco. Um preto-e-branco secular e enigmático. Ao passar para o mundo moderno, o leque de cores é ampliado numa perspectiva pictórica (segundo Ward) ainda medieval. O azul é constantemente pincelado com alaranjados fortes, numa estética repleta de tochas, sóis, metais fundidos e sombras. As luzes queimam um pouco a modorra mística de um mundo que sucumbe à beira do abismo. A fotografia é uma das responsáveis pelo misterioso sabor do filme, eficiente apesar de seus inocultáveis defeitos de roteiro é da narração confusa. A outra responsável é a brilhante trilha sonora, assinada pelo iraniano Davood Tabrizi, que fez intensa pesquisa de sonoridades medievais, sobretudo de origem celta. Uma massa sonora compacta domina o filme desde as primeiras imagens. Coros possantes e gaitas tradicionais lideram uma música primitiva e incisiva, comentário ideal para essa aventura visionária. Antônio Querino Neto
Matéria da Revista Terror & Ficção - Ed. 33T (Mar/90).