O horror faz pensar

eu-sou-a-lenda.jpg

O filme Eu Sou a Lenda é a adaptação do livro homônimo escrito por Richard Matheson, um pequeno clássico do horror, desconhecido no Brasil. Aliás, clássicos do horror são normalmente desconhecidos no Brasil. As exceções óbvias são Dracula, de Bram Stocker, e Frankenstein, de Mary Shelley. E há os pequenos contos, as pequenas jóias de grandes escritores e que foram consagradas em nossas terras pelo cinema: O Homem Invisível, de H.G. Wells, O Médico e o Monstro, de R.L. Stevenson; alguns contos de Edgar Alan Poe como O Gato Preto e A Queda do Solar de Usher. São todas obras do século XIX; todo mundo já ouviu falar delas, muito poucos leram-nas.
Eu Sou a Lenda é de 1964, já foi traduzido e editado por aqui, mas não conheço ninguém que a tenha lido. Um excerto do livro entrou na edição de 13 dos Melhores Contos de Vampiros da Literatura Universal, organizada em 2002 por Flávio Moreira da Costa, esse herói da divulgação do conto no Brasil. Ocorre que os autores de horror e de ficção científica do século XX raramente ganharam status de grandes literatos. A começar pelo primeiro deles, H. P. Lovecraft, que era um homem de cultura vastíssima, mas que nunca ganhou a admiração dos seus iguais justamente porque explorava uma suposta subliteratura. O número de nomes conhecidos, mas não muito estudados, envolvidos com os gêneros gótico de sci-fi é gigante. Saca só alguns deles: Ray Bradbury, Elery Queen, Isaac Azimov, Algernon Blackwood, Anne Rice, Philip K. Dick, Eden Phillpots, Vernon Lee, Arthur Machen, Lord Dunsany. Alguns não se incomodam com a torcida de nariz da crítica e se acomodam bem no papel de superstars da literatura ligeira, caso de Stephen King.
No Brasil recente há um pequeno fenômeno editorial, André Vianco, um funcionário da rádio Transamérica que conseguiu emplacar um verdadeiro arco de histórias de vampiros. Ele dança sobre uma tradição que, conforme indicam os nomes no último parágrafo, é anglo-saxã. O único autor digno de nota na ficção científica, digamos, clássica brasileira é José J. Veiga, cujo A Hora dos Ruminantes não costuma fazer feio no cânone tupiniquim. De fato, é difícil inscrever a maior parte dos romances de horror e de sci-fi dentro da tradição literária mais culta. São normalmente produzidos para o divertimento ligeiro – chamar medo de divertimento parece impróprio, mas não é.
Alguns escritores ganharam status graças ao cinema, mas sua literatura não é, por isso, melhor. Dois exemplos: Arthur C. Clarke, o autor de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, e Stanislaw Lem, que escreveu Solaris. Mas nem só de obras profundamente literárias vive o cânone ocidental, como provam os dois livros que abrem essa lista, Dracula e Frankenstein, ambos impregnados dos maiores clichês do romantismo inglês – sem a profundidade, digamos, de um O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë.
Eu Sou a Lenda é literatura ligeira e deliciosa, tem aquele sentimento trágico da vida que carregam grandes ficções, como Solaris e os contos de K. Dick, e também já teve um grande clássico do cinema para dar guarida ao seu status. Trata-se do filme A Noite dos Mortos-vivos, dirigido em 1968 por George A. Romero (e refilmado ene vezes). O cineasta só fez uma troca: enquanto Matheson fala de vampiros de ficção científica, Romero achou que mortos autômatos e canibais compunham uma metáfora mais precisa dos problemas sociais da década de 60. Está longe de um Proust, mas material para discutir não falta.