Deserto de incertezas


A solidão acompanhou diversos personagens de Valério Zurlini. Isso não significa que estivessem exatamente sozinhos. Por outro lado, a dor e solidão em seus filmes ocorrem pela falta de alimento à alma, pela condição humana cada vez mais degradante. A maneira de representar isso, muitas vezes, não inclui uma amostragem de desespero de seus personagens. Estes, quase sempre pacientes, esperam pela morte enquanto assistem um ambiente em movimento – ou falso movimento, por pura necessidade ou apenas pela busca de prazeres físicos, supérfluos. Difícil é não lembrar de Alain Delon em A Primeira Noite de Tranqüilidade, um de seus melhores momentos no cinema. Para O Deserto dos Tártaros, o último trabalho de Zurlini, ficou a encargo de Jacques Perrin demonstrar a espera sem fim por coisa alguma; sua dor está no enfado, mesclado a sua condição de soldado inglório e insatisfeito. Fora vencido pelo tempo.

Falecido em outubro de 1982, Zurlini foi um dos diretores mais interessantes do cinema italiano renascido no início dos anos 60. Foi ele que, em 1968, fez um filme sobre um Jesus Cristo negro (interpretado por Woody Strode), chamado Sentado à sua Direita. Ficou um tempo sem filmar, lutando para conseguir levar a obra de Dino Buzzati para a grande tela. Um desafio e tanto. Como outros grandes cineastas arriscando-se em obras grandiosas antes mesmo de materializadas, Zurlini foi até o fim, e conseguiu realizar O Deserto dos Tártaros. A abertura é belíssima, com a saída do soldado rumo ao forte, ao novo trabalho; logo, espreitando o deserto do título, tem-se o início do enfado, da espera, do passar dos anos... Perrin interpreta o personagem principal, Drogo, um homem correto vivendo num mundo de tristezas dos oficiais confinados atrás de muralhas. Aprende, depois de meses, que seu trabalho, ao contrário da ação e de conflitos, consiste em espera. Põe-se em guarda e limita-se à sua posição aparentemente gloriosa, enquanto sofre, vítima do tempo. O deserto consome-o e, ao mesmo tempo, o seduz; isso ocorre também com outros homens, sem coragem de deixar o Forte Bastiani. Numa mistura de desespero e dependência, a luta de Drogo intensifica-se quando passa a ver imagens no deserto, possivelmente tártaros que estariam construindo uma estrada para atacar o forte. Mas os anos passam e eles nunca chegam. A posição do homem violento, o soldado a serviço de sua nação, vai, cada vez mais, perdendo-se. Resta a conversa, a convivência somente com outros homens.

O enigma de O Deserto dos Tártaros está na divisão da imaginação entre público e personagens, pois nunca é perfeitamente revelado se o que ambos pensam é a mesma coisa. O filme de Zurlini acaba por gerar inúmeras interpretações para um mesmo foco. Certa noite, após Drogo ser alertado sobre a presença de guerreiros tártaros no deserto, um soldado de sua divisão aparece com um cavalo branco. O mesmo teria ido à busca desse animal exótico perambulando pelo local. Por medidas de seguranças, o guarda de vigia pede a senha para abrir o portão do forte; sem a resposta adequada, ele mata o soldado. Isso causa uma divisão entre os grupos de dentro do forte. Companheiros do falecido, pouco depois, deixam de fazer algumas celebrações de praxe, e são punidos pelo severo Major Mattis (Giuliano Gemma). No fundo, apesar de toda dor, o gesto mais parece uma procura por ação – o qual o filme sabe muito bem aproveitar para fugir da mesmice – do que uma situação relevante o suficiente para se desviar do problema central. Do lado de fora do forte, acreditam parte dos soldados (principalmente os mais velhos), existe algo em pleno movimento, dirigindo-se em suas direções. Drogo e Mattis estão de lados diferentes em relação ao enigma vivo no deserto e não viverão o suficiente para conhecê-lo.

Zurlini, assim como o romance em que se baseia, aproveita do oficio do soldado e de todas as suas divisões para mostrar o quanto a falta de violência pode amputar os desejos. E não é só. Quando Drogo dirigiu-se ao forte imaginava estar indo para uma nova vida, rica em aventuras e com muita glória. O que descobriu foi somente uma quantidade interminável de areia e de solidão. O deserto, assim como em Lawrence da Arábia, assume um papel importante; aqui, ainda mais: ao mesmo tempo em que cerca os homens é pouco observado. Algumas seqüências foram moldadas propositalmente para esconder a paisagem, para criar um clima de suspense e tensão – paradoxalmente, a metáfora não está naquilo que pode existir fora dos muros do castelo, mas sim no interior da cabeça e na imaginação dos soldados. Como escapar disso? Eis uma pergunta sem muita solução, ratificado pelo encerramento em aberto. Mesmo alguns dos oficiais seguros de si próprios, como é o caso do personagem de Max Von Sydow, crente na existência dos tártaros, nunca é possível ter qualquer certeza. Ao fim, é mostrada uma grande cavalaria inimiga rumo ao forte; os rostos e as vestimentas dos oponentes não aparecem e, assim, não é revelado a face dos vilões.

Foi possível reunir um grande elenco para essa produção. Alguns atores de poderoso calibre acabaram voltados a papéis secundários, como é o caso de Vittorio Gassman, como Filmore, e Philippe Noiret, como um poderoso general de fora do forte. Isso mostra como Zurlini tinha ainda grande prestigio na época, ajudado pela obra de Buzzati. Outro que escalou para o filme – também em um papel pouco expressivo – é Jean-Louis Trintignant, com quem havia trabalhado em Verão Violento. Perrin, aqui interpretando o papel principal, também já havia trabalhado com Zurlini, naquela que pode ter sido sua grande obra-prima, A Moça com a Valise, de 1961. O Deserto dos Tártaros, mesmo com uma incrível impressão visual, não chega perto de alguns outros filmes do diretor – como os já citados. Em toda sua obra, Zurlini focou-se nessas vidas amargas, vazias, sempre à procura de um significado muitas vezes inexistente – preenchido, por sua, pelo desejo e pelo simples fato de viver. Personagem capaz de sintetizar essa relação é Claudia Cardinale em A Moça com a Valise, nitidamente na condição de mercadoria.

Boa parte da conquista do clima obtido em O Deserto dos Tártaros deve-se à trilha de Ennio Morricone e à brilhante fotografia de Luciano Tovoli. Uma cena que vale lembrar é a despedida do personagem de Von Sydow, próximo de seu cavalo e rumo a morte certa. São momentos de desespero e de pura dor espiritual. Quem foi em encontro da obra com a intenção de se deparar com um filme de guerra ou coisa parecida certamente se frustrou. Vale mesmo o estudo minucioso das situações, da falta de qualquer coisa para fazer num castelo repleto de homens e regras. Há estas para tudo. E quando um grupo resolve desobedecer, quase um motim é anunciado. Maior que esse drama é o rosto de Perrin ao fim, doente e acamado. Mostra todas as infelicidades de um homem a serviço de um oficio ingrato – ao mesmo tempo em que o filme não procura criticar a posição do soldado. Apenas usa essa profissão para mostrar o quanto barreiras e fronteiras, inúmeras vezes, não significam nada, e o medo – essa coisa incontrolável agindo em todos os personagens – está localizado na maneira como os homens encaram o mundo externo. O cavalo branco pode ser um belo anúncio que algo de muito estranho estava próximo, que as histórias sobre os tártaros eram verdadeiras. Ou, ainda, poderia ser apenas um animal perdido no deserto, cujo dono poderia estar morto em algum lugar sob o sol. Nada é bem explicado. Resta o subjetivismo para tentar entender a dor, o tempo que resta a cada personagem. Próximo da chegada do inimigo, os soldados já perderam a vontade de lutar. Estão em seus postos, cumprindo regras; resumem a situação com um olhar triste, como o de Drogo ou do médico interpretado por Trintignant. Pouco antes dos inimigos aproximarem-se, um guarda alerta: “São os tártaros!”, num misto de felicidade e incerteza. Talvez sejam realmente os tártaros. Neste filme de Zurlini, poucos sobrarão para contar velhas histórias de luta.