Rosas de Sangue

Rosas de Sangue

“O inferno são os outros”.
Entre Quatro Paredes
Jean Paul Sartre


Ela sentia-se em paz ali naquele lugar. Toda manhã após acordar Maria ficava horas e horas ali na estufa olhando, trabalhando, alisando e podando as plantas e flores que ali estavam. Nada lhe dava mais prazer e clareza de pensamentos do que passar a maior parte do tempo possível no meio de sua pequena floresta particular.
Ao fundo perto de uma das paredes tinha um aparelho de som, no qual sempre gostava de ouvir música clássica, seus preferidos eram além de Richard Wagner que ela considerava o maior compositor de todos os tempos, Mozart, Beethoven, Tchaikovsky, Chopin e Flaubert. Mas hoje ela estava ouvindo Igor Stravinsky, iniciou sua manhã com a melodia “Dança do Pássaro de Fogo”, deste compositor que recentemente tinha descoberto e aprendido a gostar.
E assim passou quase toda metade de seu dia, ali isolada, sem nada o que fazer ou pensar além de admirar tudo o que estava ali, todo aquele bocado de natureza.
Maria andava estressada por estes dias, fora despedida depois de mais de quarenta anos de serviços prestados numa firma de contabilidade, sempre fazendo seu trabalho certo e irremediavelmente acima do esperado. Nunca recebeu uma promoção, um aumento, um obrigado ou que quer que seja, mas ela nunca se importou com isso. Pois, sempre fora ensinada a abaixar a cabeça e aceitar tudo o que o destino e as pessoas lhe reservavam.
O seu marido era outro encosto, ele sempre fora problemático, um traste o coitado, não conseguia parar em nenhum emprego fixo, sempre chegando tarde em casa, isto quando não desaparecia por dias, deixando-a só com os filhos pequenos. Tudo bem ela merecia isso, ela ouvia a voz de sua mãe falando, martelando em sua cabeça, que ela merecia, aliás ela teve é muita sorte de ter encontrado um marido, um rapaz para casar, pois, Maria sempre fora uma menina tímida, xucra e sem sal, seria uma graça divina se alguém demonstrasse algum interesse por ela.
Durante toda sua vida foi levada a acreditar que devia ser submissa a tudo e a todos, até mesmo seus dois filhos não a respeitavam, a viam como uma pessoa fraca, como alguém que apenas serviu para lhes trazerem ao mundo, nada mais. Da parte deles ela também nunca ouviu uma palavra de carinho, conforto, motivação, nada, zero a esquerda, talvez nem isto, mas tudo bem ela não se importava desde que tivesse o cantinho dela, aonde poderia refugiar-se e ficar em paz contemplando o que ela mais gostava que eram as plantas.
Na realidade mais do que as plantas e a maioria das flores o que mais a fazia sentir-se fascinada eram a variedade de cores que permeavam por ali. Sua cor preferida era o vermelho, e era por isso que gostava das rosas vermelhas, pelas cores, pelo cheiro, forma e sensibilidade, sim era tudo isso, mas a cor vermelha era o principio motriz de toda esta paz e tranqüilidade.
Mas, tudo isto lhe foi tirado a noite passada quando seu marido lhe falou que tinha vendido tudo aquilo junto com a casa, para eles poderem se mudar para um lugar melhor e maior, onde eles, marido e mulher, e os filhos sentiriam-se mais confortáveis. Na hora ficou quieta, nem o marido ou os filhos preocuparam-se com a opinião ou desejo dela, pois, ela era e sempre foi insignificante, voto vencido apenas mais um objeto decorativo dentro e pertencente a mobília da casa.
Enquanto toda sua família foi dormir, Maria ficou na varanda quieta e contemplativa durante muito tempo, até que de um supetão levantou-se e encaminhou-se a cozinha...
...
... Agora enquanto ela escuta Stravinsky e olha suas rosas lindas e tão vermelhas, ela dá uma rápida olhada para a faca de cozinha na sua mão que agora também está numa cor vermelha escura de sangue ressequido e coagulado. Atrás dela, perto de outro canteiro de rosas está seu marido e dois filhos também todos pintados com a cor vermelha do sangue. E por um momento escapa da boca de sua filha mais nova uma gota de sangue que cai e se mistura com o vermelho de uma das rosas.